A Fila Anda
Dizia Heráclito, o grego, que não nos banhamos duas vezes no mesmo rio: ou as águas já são outras ou nós não somos os mesmos. Para ele, o sol não apenas é novo a cada dia, mas sempre novo, continuamente. Ou Mário Quintana: Nunca dês nome a um rio: sempre é outro rio a passar. Nada jamais continua, tudo vai recomeçar! “Nada do que foi será, De novo do jeito que já foi um dia, Tudo passa, tudo sempre passará…”, não é, Nelson Motta? Monges tibetanos constroem enormes mandalas de areias coloridas, um trabalho meticuloso que leva meses. Quando o elaborado desenho fica pronto, despejam a mandala num rio, para representar a impermanência.
O tempo foge e as coisas também. Amores começam e acabam, sem choro, nem vela, nem fita amarela. A gente mal nasce, começa a morrer. O lactente dá lugar ao menino, que passa a bola ao adolescente, que deixa de existir ao virar adulto, o qual – de repente – envelhece. A uma estação de flores se segue a friagem do inverno; chuvas convidam à semeadura, que é seguida pela colheita. A Natureza renova-se e morre sucessivamente, ensinando-nos que nada dura e tudo é sempre novo e relativo. As folhas mortas do outono preservam a umidade das árvores, que vão eclodir em verdor primaveril. À noite segue-se o dia, ao nascer do sol, o ocaso…
A roda-gigante dos lançamentos eletrônicos nos atordoa e seduz, o iPod de hoje é logo substituído pelo iPhone, o dvd pelo blu-ray, a tela plana pelo cristal de plasma. A bateria do relógio está-se aposentando e os games de hoje serão esquecidos amanhã. Os modernos objetos do desejo são verdadeiros óvnis, girando a velocidades inimagináveis. Não é apenas o sol que nasce no Oriente: é toda uma indústria de gadgets, que atiça a vaidade de possuir o ‘ultimo lançamento’ da indústria dos chips.
A tecnologia faz e acontece, mas o homem continua preso à sua engrenagem biológica: nasce dependente, leva um ano para andar, dois para falar, três para começar a pensar. E uma vida inteira para aprender a viver. Esse descompasso entre a velocidade das criações eletrônicas e a relativa lentidão das aquisições da natureza humana gera no homem uma ansiedade crescente. E acentua as disparidades: enquanto uns salivam sobre escolhas tecnológicas, o maior contingente de habitantes da terra nem saiu da linha de miséria nem da exclusão social.
Sim, a fila anda, aliás, a fila voa – para alguns. A fila tecnológica, a fila amorosa, a fila da informação, a fila dos gigabytes, a fila automobilística. Tudo exige um ‘novo modelo’ ou uma ‘nova pessoa’, para que a fila continue andando. A única fila que não anda é a dos que esperam pelas beiradas do consumo e do sistema: a fila burocrática dos processos, a fila dos ‘benefícios sociais’, a fila dos enjeitados, a fila dos famélicos e dos doentes crônicos. Emblematicamente, essa fila se materializa todos os dias nos postos da previdência e nas portas dos hospitais. É como se ela existisse desde que o mundo é mundo, e jamais conseguisse sair do lugar. Não adianta reclamar; o cidadão pode ser acusado de ‘desacato’. É renitente e mastodôntica; não existe santo que faça essa fila andar…
sábado, 17 de maio de 2008
A Fila Anda
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